O Povo Negro Se Move
Contra todas as probabilidades — fronteiras e barreiras, desigualdade estrutural e subdesenvolvimento, políticas e policiamentos discriminatórios, entraves administrativos e brutalidades, o olhar constante, a suspeita, a vigilância — a gente se move. Cruzamos o mundo, escorregando pelas brechas dos sistemas feitos para nos imobilizar ou, pior, nos virar contra nós mesmos. E ainda assim, nos movemos — de forma estratégica, espiritual, insistente.
Mas não nos movemos sozinhos. Levamos mais do que nossos corpos através de fronteiras e tecnologias codificadas como “agência”. Contrabandeamos cultura, subvertemos economias e construímos novas infraestruturas de relação por onde passamos. Músicas, roupas, penteados, culinárias, crioulos e linguagens vernaculares, jeitos de fazer família, sistemas morais e financeiros de crédito e dívida — colocamos mundos inteiros em movimento. A cultura afro não é artefato estático. Ela viaja com a gente. Ela muta, remixa, se multiplica. Deixa vestígios, não só pegadas. Ganha força ao se mover.
Parafraseando AbdouMaliq Simone: o povo é infraestrutura. Poucos vivem essa verdade com tanta intimidade quanto os povos africanos — também conhecidos como os condenados da terra, mas igualmente como povo da terra — aqueles brutalmente arrancados, sequestrados, exportados, escravizados e tornados socialmente mortos através dos oceanos, e aqueles que ficaram, sobrevivendo no rastro dessas ausências apocalípticas. Não foi apenas a destruição de povos; foi o desmonte de infraestruturas — rotas comerciais cortadas, sistemas de governança desfeitos, arquiteturas de saber e relação reduzidas a escombros. E ainda assim, a partir desses destroços, reconstruímos. Não apenas por reconstrução, mas por reinvenção.
Sabemos que não são apenas os Estados ou corporações que constroem redes de troca, mobilidade e sobrevivência — nós também fazemos isso. E temos um nome para essa prática: Ubuntu. Através da improvisação e da necessidade, geramos uma infraestrutura global autônoma de cultura e comércio — não abrigada em instituições rígidas, mas animada por corpos vivos e em movimento. Não esperamos ser conectados; nos conectamos por conta própria. Nossas rotas se constroem caminhando, correndo atrás, segurando uns aos outros.
Vivemos num mundo onde infraestrutura é entendida como algo material, mecânico e automatizado — quanto mais mecanizado o sistema, mais “infraestrutural” ele parece ser. Mas, como nos lembra o ecólogo Malcom Ferdinand, a dupla fratura da modernidade nos ensinou que infraestrutura é aquilo que permite viver sem o outro — privatizando, isolando, extraindo o indivíduo de suas ecologias de ser e não-ser. Mas nossas infraestruturas insistem na relação. Elas são íntimas, fugitivas, táteis e móveis. São construídas às vistas de todos, mas seguem ilegíveis para quem interpreta nossa complexidade como caos. Se encantam com a emergência de arte, música, moda, culinária e tecnologia nas zonas que chamam de carência. Não veem nossos mercados, salões de beleza, igrejas, cozinhas, bailes e linguagens cifradas como nada além de ruído. Não reconhecem isso como infraestrutura.
E por isso, patologizam. Chamam nossos movimentos de disfunção. Descrevem nossas redes como falhas. Tratam nossos mundos como provisórios, nossos encontros como ameaças. Por lerem errado nossas infraestruturas relacionais orientadas por Ubuntu, tentam desmantelá-las — substituindo-as por sistemas mecanizados e extrativistas, em nome do “desenvolvimento” e do “progresso”. Ao mesmo tempo, se apropriam da genialidade cultural nascida da criatividade infraestrutural negra do “Novo Mundo”, apagando as condições que tornam essa genialidade necessária e possível. Roubam a canção, mas silenciam a cantora. Copiam o estilo, mas apagam a história. E então chamam sua versão de futuro.
Mas a gente sabe a verdade. E está na hora de mostrar que sabemos.
Black: Cite; Sight–Site é uma exploração participativa e em camadas das práticas de construção de mundos afro-diaspóricas. Não busca legitimação nos marcos dominantes — ela traz os seus próprios. Recusa a patologização da relacionalidade negra e, em vez disso, organiza investimentos — financeiros, materiais e afetivos — em seu florescimento. Propõe um contra-arquivo, um diagrama vivo, um caminho possível. Isso não é nostalgia. É ativação. É design. Queremos ajudar as pessoas — especialmente as nossas — a reconhecer que encontros informais e não autorizados de povos afrodescendentes há muito tempo lançam as bases de uma outra globalização e de uma tecnosfera planetária alternativa — não baseada na extração, mas em Ubuntu: uma interdependência inter- e intra-humana plenamente realizada.
Não estamos esperando ser incluídos. Já estamos aqui, já estamos construindo.
Texto por Muindi Fanuel Muindi e OD Enobabor, 2025